sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A arte de criar palavras ou de “bilhar” à “bilhardice”

1. A Linguística e as Artes

É estranho, no sentido de ser invulgar, alguém da Linguística participar numa actividade artística. O que é que a Linguística, a ciência que estuda a linguagem por si só, sem qualquer outro objectivo, tem a ver com um projecto artístico? É comum haver pontes entre a Literatura e a Arte, como se pode constatar com o trabalho de Luísa Cunha, embora indicasse que as frases cultivadas não são do domínio das Letras, mas das Artes. Essa ligação sucedeu com o Surrealismo, onde se juntaram escritores e pintores. Com a Linguística, entendida como disciplina científica, não me lembro de nenhuma interligação, embora me tenham falado da arte conceptual. Contudo, a linguagem usada pela Arte parece-me específica o suficiente para merecer alguma atenção por parte da Linguística. Todos conhecemos a origem da palavra “impressionismo” e o valor que ela tinha quando foi pela primeira vez usada. Empregue, de início, em sentido pejorativo, completamente depreciativo, evoluiu positivamente. Os títulos dos quadros ou de outras obras de arte, mesmo a sua ausência, terão pertinência e poderiam constituir um corpus de trabalho linguístico, mas não tenho ideia que isso tenha, alguma vez, sido realizado. A Linguística, mesmo delimitando o seu campo de acção e os seus instrumentos de trabalho, definindo o seu objecto de estudo, pode colidir com áreas de outros saberes, nomeadamente, e entre outros, com a Física, a Filosofia ou a Medicina. A minha intervenção neste projecto não se explica, portanto, pelas afinidades entre a Linguística e a Arte, mas, simplesmente, creio eu, porque há uma palavra, “bilhardice”, que interessou a um artista, Ricardo Barbeito, e que me interessa a mim, enquanto estudiosa da linguagem.

2. A arte de criar palavras

O que significa “bilhardice”? É provável não ser esta a questão mais pertinente, de momento, porque, por certo, todos os madeirenses, genuínos ou por afinidades, a sabem usar e, consequentemente, acabamos por saber o que significa. A questão premente será a de saber porque dizemos “bilhardice” na Região Autónoma da Madeira, quando noutras partes do mundo lusófono, incluindo, sobretudo, Portugal Continental, são usados outros termos. Só para dar alguns exemplos: “mexerico”, “coscuvilhice” ou “bisbilhotice”. Assim, a questão incidirá sobre a importância dos regionalismos. A propósito, o que é um “regionalismo”? Em sentido lato, podemos dizer que será algo característico de uma determinada área geográfica bem delimitada, encontrando-se apenas nela e não existindo, à partida, noutras. A feitura do bolo do caco é regional; o bordado Madeira é regional, aliás, a própria designação remete para a geografia; as levadas caracterizam a Madeira, os palmitos são próprios do Porto Santo. Num sentido mais restrito, poderemos considerar algum vocabulário, dito, sobretudo, popular, como os regionalismos madeirenses. Tanto quanto os produtos mencionados, as palavras “semilha”, “tapassol” (tapa-sol) ou “bus(z)ico” são próprias da região. Que eu saiba, não existem noutros lugares, a não ser onde haja comunidades de emigrantes madeirenses. Contudo, há termos próprios desta região que são comuns a outras, a saber, “prisão”, “batata”, “pereira”, “horário” ou “bilhardar”. Sim, “bilhardar” é uma entrada de dicionário de língua portuguesa. Então, há, essencialmente, dois grandes tipos de regionalismos linguísticos: os originais, que não ocorrem noutras zonas, como “semilha”, “tapassol” (tapa-sol) ou “bus(z)ico” e os de sentido original, que ocorrem noutras zonas, mas não com o sentido que lhes é atribuído nesta região, como “prisão” (gancho de cabelo), “batata” (que se distingue de “semilha” porque identifica apenas a batata-doce), “pereira” (a árvore que dá pêra abacate), “horário” (o autocarro) ou “bilhardar” (falar da vida alheia).
Vendo bem as coisas, os termos originais indicam que a criatividade não é só artística, isto é, das Artes, mas é também linguística. O ser humano é, potencialmente, um criador de palavras. Se é certo que recebe um património linguístico, também é evidente o facto de lhe ser permitir inovar, dando, à comunidade, o fruto da sua criação. Isso é evidente com a terminologia científica, mas frequente com o falante comum. O que motivará a criatividade linguística? A necessidade de adequação à novidade, o que é notório no domínio tecnológico, essencialmente no ramo da informática, será um factor impulsionador de neologismos. Criar palavras novas obedece, todavia, a determinados critérios. No português, seria impossível ter sequências de cinco ou seis consonantes, sem haver um som vocálico pelo meio. Os signos linguísticos, o que comummente designamos por “palavras”, são convencionais e resultam de hábitos colectivos. Caracterizam-se pela sua arbitrariedade. Como indicado por Ferdinand de Saussure, linguista impar, porquê dizer “irmã” para aquilo que representa? Poderíamos usar outro signo, por exemplo, “mirã”, embora a etimologia seja, por vezes, determinante. Também é possível criar termos a partir de outros já existentes. Estes serão menos arbitrários. É o caso de “guarda-chuva” ou “guarda-sol”, formados por “guarda” e “chuva” ou “sol”. Recordo-me, a propósito, de um termo que representa uma espécie de “guarda-chuva” que protege do sol, mas não tem as dimensões do “guarda-sol”. Trata-se da “sombrinha” indicada para o sol, mas que se pode usar também para a chuva. Portanto, a criatividade dos falantes não tem limites. Actualmente, dizemos, com frequência, “ciao”, quando nos despedimos de um amigo. Porquê fazê-lo quando temos “até logo”, “até amanhã”, “até à próxima” ou “adeus”? Porquê usar uma palavra de origem italiana? É um hábito que se instala e se torna comum. Temos dificuldades em dizer quem começou a usá-lo e porquê, mas constatamos o uso generalizado. Já alguém me lembrou que não deveríamos dizer “olá” ou “oxalá” porque remetem para “Alá” que não pertence à nossa cultura judaico-cristã. Contudo, quem é que pensa nisso quando diz “olá”? Quando um hábito, linguístico ou não, se difunde, enraizando-se numa determinada colectividade, torna-se próprio dessa cultura e só os falantes o poderão rejeitar, chegando até a esquecê-lo. Deste modo, há regionalismos que caíram em desuso e outros que perduram.
Pode parecer que me afastei do meu tema. Desenganem-se. Só quero demonstrar que mesmo havendo uma palavra que serve o que pretendemos, outras se lhe podem sobrepor por diversas razões. A pergunta é, então, esta: se já há uma palavra com um determinado sentido, para quê criar outra com o mesmo? Uma vez que o português falado na Região Autónoma da Madeira não é, substancialmente, diferente das variedades faladas no Continente português, ideia que permitiu a Paiva Boléo considerar a unidade da língua portuguesa maior do que a sua diversidade, porquê haver aqui uma palavra com o mesmo sentido de outra que já existe? Serão “bisbilhotice” e “bilhardice” o mesmo? Dependerão da escolha do falante? Variarão consoante o nível de língua? Ouvi, na região, frases como estas: “o teu saco não é nada bilhardeiro” e “os teus armários não são bilhardeiros”. Poderíamos usar nestas frases “bisbilhoteiros”? Querem, em ambas as frases, dizer que não se consegue ver o que está dentro do saco ou do armário, isto é, não são transparentes, não revelam o que contêm. Será este o sentido original de “bilhardeiro” ou de “bilhardice”?

3. De “bilhar” a “bilhardice”

Para procurar a etimologia das palavras, as suas raízes, temos, obrigatoriamente, de recorrer a dicionários. A minha pesquisa inicia com alguns dicionários gerais da língua portuguesa, alguns dos que tinha à mão: Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Grande Dicionário da Língua Portuguesa coordenado por José Pedro Machado, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa e Grande Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo. A pesquisa passa também por um dicionário de francês e, finalmente, termina com alguns vocabulários regionais: Palavras do Arquipélago da Madeira de Emanuel Ribeiro, Elucidário Madeirense e Vocabulário Madeirense, Vocabulário Popular do Arquipélago da Madeira. Alguns Subsídios para o seu Estudo do Padre Fernando Augusto da Silva, Falares da Ilha. Dicionário da Linguagem Popular Madeirense de Abel Marques Caldeira, Vocabulário do Dialecto Madeirense de Jaime Vieira dos Santos, Dizeres da Ilha da Madeira. Palavras e Locuções de Luís de Sousa, Ilha da Madeira. II Estudos Madeirenses de Eduardo Pestana, Porto Santo. Monografia Linguística, Etnográfica e Folclórica de Maria de Lourdes de Oliveira Monteiro (dos Santos), Os Falares da Calheta, Arco da Calheta, Paúl do Mar e Jardim do Mar de João da Cruz Nunes e o Vocabulário do romance “Minha Gente” de António Marques da Silva. Corro o risco de esquecer alguma fonte importante, mas o objectivo, aqui, também não é o de citar todas as existentes. Portanto, o levantamento será o mais breve e sistemático possível, realçando as repetições dos diversos dicionários e destacando o que têm de original para a palavra “bilhardice” e palavras da mesma família.

3.1. Os dicionários gerais

Para o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian, bilhardar vem do francês “billarder” e tem os seguintes significados: 1- Tocar ou bater, no jogo de bilhar, duas vezes na bola ou em duas bolas ao mesmo tempo, com o taco; fazer carroça. / 2- Jogar a bilharda. / 3- Pop. Levar vida de vadio, de mandrião. Este último sentido é de reter e sublinho-o por isso mesmo. Portanto, se vem do francês, não foi uma palavra criada pelo falante português. Foi, apenas, adaptada à nossa língua. Há, na definição, a referência a dois jogos: “bilhar” e “bilharda”. Veja-se o que este dicionário adianta a propósito de cada um: a- bilhar vem do francês “billard”, ou seja, ‘taco para mover as bolas’. O termo designa, simultaneamente, o jogo em si (1- “Jogo praticado com três bolas pesadas e rígidas que, impulsionadas por um taco de madeira, deslizam sobre uma mesa especial.”), a mesa onde é jogado (2- “Mesa rectangular (…), onde se pratica o jogo com o mesmo nome.”) e a sala onde é realizado (3- “Sala equipada para a prática deste jogo.”) b- bilharda: (Do fr. billard) – definições sintetizadas: 1- Jogo tradicional de rapazes, que consiste em fazer saltar, com um pau, outro mais pequeno, de modo a que este seja projectado o mais longe possível e não caia num círculo traçado no chão. 2- Pau mais pequeno, aguçado nos dois lados, usado nesse jogo. Este dicionário tem também uma entrada para bilharista: s. m. e f. (De billar + suf. -ista ) – 1- Jogador de bilhar. Há igualmente entradas para bisbilhotar: (Do it. bisbigliare ‘ murmurar ’) 1- Deprec. Procurar saber factos, aspectos da vida privada de outras pessoas. = coscuvilhar / 2- Falar acerca da vida privada de outras pessoas. = coscuvilhar, mexericar / 3- Mexer nos objectos pessoais de outras pessoas. = esquadrinhar, remexer / 4- Investigar com interesse ou curiosidade. = examinar // para bisbilhoteiro: s. ou adj. (De bisbilhotar + suf. -eiro) - 1. Pessoa que se intromete na vida alheia, que procura saber factos e segredos das outras pessoas, que é dada a bisbilhotar. = coscuvilheiro, mexeriqueiro // para bisbilhotice: (De bisbilhotar + suf. -ice) – 1- Acto de observar ou ouvir de um lado para depois ir contar no outro, de forma maliciosa. = coscuvilhice, enredo, mexerico.
No Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado, registam-se as mesmas entradas e, sensivelmente, as mesmas definições, mas contam-se, também, entradas e definições diferentes das assinaladas pelo dicionário anterior (sublinho as que poderão ter interesse): Bilhar = (do fr. billard, de bille) – 1- Jogo / 2- Mesa / 3- Casa / 4- Sala // Bilharda – 1- Pau adelgaçado de um jogo de rapazes que exige outro pau mais comprido / 2 - Pau menor do jogo / 3 = pénis // Bilhardar – 1-Tocar duas vezes na bola ou em duas bolas a um tempo, no jogo do bilhar / 2- Jogar a bilharda. / 3- Vadiar. // Bilhardeira (de bilharda) - Mulher de levar e trazer, intrigante, que anda de casa em casa dando notícias, etc. (Não é assinalado como regionalismo)// Bilhardeiro (de bilharda) – 1- O vadio que joga a bilharda. / 2 = bilhardão // Bilhardona (de bilhardão) – 1- Mulher vadia // Bilharista s. 2 gén. (de bilhar) - 1. Jogador de bilhar // Bisbilhante adj. 2 gén. ( de bisbilhar) – 1- Que bisbilha; murmurante, tremelicoso. // Bisbilhar (do ital. bisbigliare ?). 1- Mumurar, falando-se especialmente das águas. / 2-Tremelicar // Bisbilho (de bisbilhar) – 1- Acção de bisbilhar. // Bisbilhotar v. tr. e intr. 1- Intrigar, enredar; mexericar; dar fé / 2- Segredar / 3- Examinar, esquadrinhar // Bisbilhoteiro (de bisbilhotar) – 1- Pessoa que tem o vício de segredinhos, enredos, mexericos, que se mete na vida dos outros ou procura saber dos actos e segredos alheios // Bisbilhoteria – 1- Bisbilhotices, mexericos // Bisbilhotice – 1- Enredo, mexerico / 2- Observação maliciosa do que se passa para depois contar e intrigar.
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa do Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, encontram-se detalhes que nenhum outro dicionário menciona, por exemplo, a datação das palavras : bilhar (1770) - (…) ETIM. fr. billard (1399) ‘bastão ou taco para jogar pequena bola’, der. de bille < lat. medv. billia ‘tronco de madeira’ + suf. Fr. –ard; f. aport. D. 1750; a palavra passou a designar o jogo, a mesa do jogo, por fim o local do jogo; var. divg. port. bilharda (1770) // bilhardar (1899) – 1- no jogo, bater duas vezes com o taco na bola ou impulsionar duas bolas de uma só vez/ 2- jogar a bilharda / 3- viver ociosamente, estar ocioso; vadiar, mandriar / ETIM. PROV. bilharda + -ar, sob infl. do fr. billarder (1704) ‘id. ‘ O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª ed. revista e ampliada, Ed. Nova Fronteira, 1ª 1986, não traz nada de, realmente, novo e regista as mesmas entradas que os anteriores [bilhar, bilharda, bilhardar – pop. vadiar, mandriar, bilhardeiro – 1. jogador de bilharda, 2. Pop. Vadio, mandrião, bilharista]. Para bisbilhotar, e uma vez que não se registaram grandes diferenças, assinala-se, apenas, o seguinte detalhe [Var. (bras. pop.): esbilhotar].
O Grande Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo é o único que tem a entrada com o regionalismo madeirense, a par das entradas comuns aos restantes dicionários mencionados: bilha Prov. O mesmo que bilharda // bilhar // bilharda (Da mesma or. que bilhar) // bilhardão (= bilhardeiro, vadio)// bilhardar (Fr. billarder) Pop. Vadiar // bilhardeira, f. Mad. Mulher enredadeira, mexeriqueira. // bilhardeiro - Jogador de bilharda. Vadio, garoto. // bilhardona - Mulher vadia (De bilhardão) // bilharista - Jogador de bilhar
Em síntese, “bilhardice”, não é entrada de dicionário, pelo menos não é um termo atestado pelos dicionários indicados, porventura, os mais conhecidos da língua portuguesa. Registam, porém, palavras da mesma família, como “bilhardar”, “bilhardeiro” e, até, “bilhardeira” no sentido do regionalismo madeirense. Segundo a datação existente, “bilhardar” é do século XIX. Portanto, tudo leva a crer que “bilhardice” será desse século ou, então, mais recente. Estão, os termos indicados (“bilhardar”, “bilhardeiro” e “bilhardeira”), relacionados com os jogos do “bilhar” e da “bilharda”, resultando de um uso popular que aponta para “vadio”. Como os três vêm do francês, “bilhardice” também aí deve ter a sua origem. Assim, antes de mencionar os vocabulários madeirenses, convém consultar um dicionário de francês porque, por aquilo que se viu, a grande diferença entre “bilhardice” e “bisbilhotice” é que a primeira vem do francês e a segunda do italiano, já que a nível de datação poderão ser contemporâneas. O dicionário de francês consultado foi: Dictionnaire du Français contemporain e trouxe a informação que se segue: Billard – 1- jeu / 2- Fam. Passer, monter sur le billard, subir une opération chirurgicale (= monter sur la table d’opération) / 3- Fam. Cette route est un vrai billard, elle est plane et d’un entretien parfait / 4- Pop. C’est du billard, ça va tout seul, c’est très facile (syn. : ça va comme sur des roulettes). Encontra-se também uma palavra que pode ter alguma importância para “bilhardice”: Billevesées – 1- Paroles vaines, frivoles; sans rapport avec la vérité (emploi littér.) : N’écoutez pas ces billevesées (syn. : BALIVERNES, FADAISES). Il a traité de billevesées tous les projets présentés (syn. : CHIMÈRES, UTOPIE). Raconter des billevesées (syn. SORNETTES, SOTTISES). Não encontrei registo para billader. Nenhum detalhe, na definição francesa, faz supor que o significado atribuído a “bilhardice”, na região, provenha, directamente, da definição de “bilhard”. Resta, portanto, percorrer alguns vocabulários madeirenses para verificar o que se pode encontrar de particular para “bilhardice”.

3.2. Os vocabulários regionais

Não encontrei nenhuma entrada, nem de “bilhardice”, nem de palavras da mesma família, em Porto Santo. Monografia Linguística, Etnográfica e Folclórica de Maria de Lourdes de Oliveira Monteiro (dos Santos), no Elucidário Madeirense, no Vocabulário Madeirense, Vocabulário Popular do Arquipélago da Madeira. Alguns Subsídios para o seu Estudo do Padre Fernando Augusto da Silva ou em Dizeres da Ilha da Madeira. Palavras e Locuções de Luís de Sousa. Apenas a entrada “bilhardeira” é atestada em Palavras do Arquipélago da Madeira de Emanuel Ribeiro: “Bilhardeira – Diz-se da mulher que, divulgando um segredo, provoca enredos.”, no Vocabulário do romance “Minha Gente” de António Marques da Silva, vêm assinalados os termos: “Bilhardeira ou Belhardeira – Coscuvilheira”. Em Falares da Ilha. Dicionário da Linguagem Popular Madeirense, da autoria de Abel Marques Caldeira, regista-se, apenas “Bilhardar, Ver[bo]. Conversar. Falar muito sobre a vida dos outros.. – A senhora Maria já ‘tá lá-lem a bilhardar, há mais ‘duma hora. Rapaz, muito tem ela que falar na vida de cada um…”. Eduardo Antonino Pestana, em Ilha da Madeira. II Estudos madeirenses, apresenta, sinteticamente, “bilhardar: mexericar” e “bilhardeiro: mexeriqueiro”. Curiosamente, insere um termo que não ocorre noutros vocabulários citados: “bilhaustreira: mexeriqueira”. ”Em Os Falares da Calheta, Arco da Calheta, Paul do Mar e Jardim do Mar de João da Cruz Nunes, mais precisamente na página 144, há uma entrada para o verbo e outra para o substantivo feminino: “Bilhardare [sic] (v. i.) – Falar na vida alheia. Bisbilhotar. Intrigar / Bilhardeira (s. f.) – Mulher que passa a vida a bilhardar [sic]”. Só em Vocabulário do Dialecto Madeirense de Jaime Vieira dos Santos, Revista Língua Portuguesa, vol. VIII p. 148, é assinalada a entrada “bilhardice” a par do verbo e do substantivo masculino e feminino: Bilhardar – “Murmurar, falar da vida alheia.” / Bilhardeiro, “a - que fala da vida alheia.” / Bilhardice – “falso testemunho, aleivosia. Aquelas raparigas nam fazem senão bilhardar. Obs. – É vulgaríssimo em tôda a Ilha.”

4. Síntese: “bilhardice” e “bilhar”

De tudo o que afirmei, fica claro que “bilhardice” é uma palavra criada com base em “bilhar”, tendo uma origem francesa. Distingue-se, portanto, de “bisbilhotice” que tem uma origem italiana e um sentido etimológico diferente. Eis como de um jogo (bilhar ou bilharda) se passa para a noção de vadiagem (bilhardar) e de vadio (bilhardeiro), chegando, finalmente, à ideia de falar da vida alheia (bilhardice), como sucede com as bilhardeiras da TSF-Madeira, um programa diário com bastante sucesso devido à bilhardice.

Bibliografia


CALDEIRA, Abel Marques (1993). Falares da Ilha. Dicionário da Linguagem Popular Madeirense. Coordenação de José Abel Caldeira. 1ª edição de 1961, Funchal: Eco do Funchal.

FIGUEIREDO, Cândido de (1986). Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Bertrand. 1ª ed. 1939, 23ª ed..

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2005). Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia – Portugal. Lisboa: Temas e Debates.

Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001). Academia das Ciências de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Verbo.

Dictionnaire du Français contemporain. Spécial enseignement (s/d). Paris: Larousse.
Grande Dicionário da Língua Portuguesa (1996). 1ª ed. Publicações Alfa, Sociedade da Língua Portuguesa, 1991, coordenação de José Pedro Machado. Lisboa: Círculo de Leitores.

MONTEIRO (dos Santos), Maria de Lourdes de Oliveira (1950). Porto Santo. Monografia Linguística, Etnográfica e Folclórica. Separata da Revista Portuguesa de Filologia. Coimbra: Editora Casa do Castelo.

Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª ed. revista e ampliada, Ed. Nova Fronteira, 1ª 1986.

NUNES, João da Cruz (1965). Os Falares da Calheta, Arco da Calheta, Paúl do Mar e Jardim do Mar dissertação inédita de Licenciatura. Lisboa: Universidade de Lisboa,
PESTANA, Eduardo Antonino (1970). Ilha da Madeira. II Estudos Madeirenses. Funchal: ed. Câmara Municipal.

RIBEIRO, Emanuel (1929). Palavras do Arquipélago da Madeira. Porto: Maranus.
SANTOS, Jaime Vieira dos. Vocabulário do Dialecto Madeirense Revista Língua Portuguesa, vol. VIII.

SILVA, António Marques da (1985). Vocabulário do romance “Minha Gente” Crónica Romanceada (livro póstumo). Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura, Direcção Regional dos Assuntos Culturais.

SILVA, Padre Fernando Augusto da e MENESES, Carlos Azevedo de (1998). Elucidário Madeirense. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura – Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 3 vols. (1.ª ed., 1921-1922).

SILVA, Padre Fernando Augusto da (1950). Vocabulário Madeirense, Vocabulário Popular do Arquipélago da Madeira. Alguns Subsídios para o seu Estudo. Funchal: Junta Geral do Funchal.

SOUSA, Luís de (1950). Dizeres da Ilha da Madeira. Palavras e Locuções. Funchal: Ed. de autor.


Helena Rebelo
Universidade da Madeira

3 comentários:

APC disse...

A D O R E I !!!

Excelente levantamento. Uma ilha de saber feita por mãos próprias.

:-)

APC
(Lx)

Ricardo Barbeito disse...

Muito obrigado por ter dedicado alguns minutos a ler e a ver um trabalho que me deu muito gozo a fazer. Este trabalho sem a preciosa colaboração dos coferencistas não teria a mesma consistência.
obrigado

Miguel Fonseca disse...

Bom dia, Caro Ricardo Barbeito, gostaria que me indicasse, se possível, qual o significado de "bilhardice" atribuído pelo Dicionário de Cândido de Figueiredo, visto que estou a concluir um trabalho sobre o tema e não sei onde consultar aqui na Madeira esse dicionário. Obrigado, Miguel Fonseca.