terça-feira, 20 de maio de 2008

Querido Primo por Diana Pimentel


“Querido primo,
Espero que esta te encontre bem...”



não há muito tempo mas parece tanto era assim que eu pressentia escrever-te.
era uma carta mas entretanto troquei-te e troquei-me as voltas
ou foi do sol que ardeu no último fim-de-semana de abril

ou do vento leste que quase (por muito pouco) não me tocou (eu estava longe da ilha – li nas notícias a previsão do tempo; leste? leste!? agora não se diz como sempre se disse “abril águas mil”...?).
? ou terá sido do voo (ou da viagem) que então me aconteceu (madeira/lisboa a planar // lisboa/porto a guiar)?
ou foi do regresso (porto/madeira a aterrar)?

foi com certeza da bilhardice que esta semana súbita e espantosamente nos apareceu, em tons quentes (vermelho vivo vermelho escuro), cores no CORação da cidade (e branco, a giz, a corrector, a lápis e a caneta, umas de feltro, outras bic (“escrita fina, escrita normal”...)
tantas letras a declarar o que não sabemos dizer em alta voz... eu não sei...)


trouxe o posto, estamos a postos, apertem os cintos de segurança (jornais? “chá, café, larajada...?”); vou contar-vos uma história: chama-se (disseram-me...) “boa viagem / boarding pass”. (confesso que sinto que “ler é muito mais difícil que escrever”...)

era uma vez cada um de nós – ilhéus, ilhoas, cubanos e madeirenses, estranhos e estrangeiros – portugueses todos, fumadores ( alguns)

todos sabemos que “fumar prejudica gravemente” a nossa saúde “e a dos que nos rodeia” mas – quase sem querer eu li em letras grandes e gordas num dos “postos de escuta” e de escrita pousados nesta cidade: “A bilhardice faz bem à saúde”. ora, não há melhor remédio...

ontem ao passar por esta avenida ao acaso e quase quase à hora do ocaso encontrei uma rapariga que falava uma língua estranha (turco? grego?)
disse chamar-se Rhodes e era muito mas mesmo muito antiga (do século XVI ou XVII, não me lembro bem)

explicou-me que nesse tão antigo passado era uma ilha e a ela se tinham encostado barcos, barcarolas, caravelas, cascos e mastros de dia por tanto tempo e sob os astros como faróis em terra firme firme 

muitos anos depois – contou-me entre a sé e o golden gate – tinha aderido ao “Movimento Nacional Feminino” (eram anos de guerra – eu não sei qual, mal tinha nascido – e escreviam-se aerogramas (uma espécie de envelopes sem papel, de cor parda “edição exclusiva” manuscritos enviados a favor dos “soldados de Portugal” por “correio aéreo” um presente da TAP dos anos 60 e 70...)

nesse tempo a sempre menina Rhodes correspondia-se com um garoto a quem tinham dado nome de rio (e de cão, já agora, sobretudo no norte, como muitos de nós sabemos...), era o Douro.

o rapaz nem era mau rapaz... às vezes – a brincar, entre bilhardices... – riam-se e perguntavam: vens de espanha ou és português...? quando desaguas no atlântico, encontras o minho ou segues oceano dentro? É que o gaiato tinha mesmo nascido numa terra minhota... 

essa vila era – e ainda é (concelho de Monção, distrito de Viana do Castelo) – Barbeita e na escola (ali um pouco acima do largo, logo a seguir a uma palmeira que entretanto foi crescendo como as nossas pernas e tem um sombra forte e alta como a região: Alto Minho)
bom, na escola a professora tinha-lhe ensinado que o nome da terra – Barbeita – era ancião (que é como quem diz velho sem ofender e valioso sem envaidecer demasiado, só um bocadinho...) e que tinha deslizado – como quem escorrega na neve ou na relva, devagarinho – da Galiza até ao primeiro rio da fronteira de Portugal (acho que isto em linguagem séria se diz que o nome Barbeito tem uma “origem peninsular” e que hoje – hoje mesmo, dia 7 de Maio – continua a haver um ramo insular, sem S, Barbeito, e um outro (eu cá acho que é o mesmo mas não sei...) galhinho ou ramo, BarbeitoS, como ensinou a professora, galego, que descende de uma outra cidade parecida com esta mas espanhola, pontevedra.
a verdade verdadinha desta história toda (ainda falta um bocadinho...) é que a Rhodes (que assim esguia alta e debruçada na areia perto do mar parece uma ilha ou uma sereia, não sei bem) e o Douro (que tem nome de rio e há tanto tempo atravessa o atlântico)
a Rhodes e o Douro que se conhecem há séculos
andam por aqui (agora agorinha..., não digam nada...)
vieram juntos num avião que desenhou riscos no céu
andam a ler sinais linhas desenhos um novo alfabeto nas galerias do Funchal 
demoram-se nos jardins – perdem o olhar e as palavras entre os jacarandás em flor e as árvores do fogo, encadeados, alcançados –
sentam-se, conversam, calam, falam falam falam
e depois – é urgente, não tarda há outra maré, a sétima onda, outra estação, o próximo voo e o “porto aqui tão perto” – fixam em película fotográfica momentos “para mais tarde recordar” 
a cores “serviço expresso”, na loja “foto sol” (numa rua chamada fernão ornelas, a caminho do mercado, explica o mapa que trazem na mão)
reparam entretanto na placa 
que lhes fala de “saudades de ouvir as suas (as nossas?) cassetes de música antigas” e pedem ajuda. “consulte-nos”, pede a placa e ambos consentem
(pedem a morada, talvez lhas enviem por correio e os hits re-voltem pela mão do carteiro cd’s muito novos agora sim, modernos, tão cheios de clássicos de todos os tempos)

lembram-se de repente ao andar pela rua Direita 
que lhes faltam tintas pincéis rolos pregos e cordéis (os quadros por pendurar nas paredes por pintar, em casa
a casa a que ambos voltarão de volta de novo)
Casa de Santo António 
e um número de telefone estranho escrito na fachada (no hotel tinham dito que o indicativo da região era 291, este parece de um outro lugar estranho...) era uma marca efémera que se tornou estranha (mas não errada, apenas estranha; se ligarmos, alguém atenderá?)


ainda há tempo pouco mas bastante
anda há lugar para diversões um jogo de bilhar 
(ou de snooker, à inglesa), um copo num bar “três estrelas”
poncha, da tradicional, se faz favor
telefonar para casa, ver a caixa de correio electrónica
encomendar sonhos 
encomendam sonhos
têm tempo de esperar que se façam
que arrefeçam
e de os provar 
sim, nesta cidade de espanto de encanto (que encanto.
canto a canto. que canto), algures perdida numa rua muito pequenina há uma “fábrica de sonhos”
(não contem, é segredo nosso...)

Rhodes e Douro voltarão a casa, por dentro da
“sombra das nuvens no mar” 
uma sombra olhada acima do mar acima das nuvens
lêem e vêem um mapa imenso de lugares e de mares por conhecer e aprender 
no banco do avião lerão estas palavras: “Há o contar os contos. Há o fazer as contas. Há ainda a cantiga. E então descemos até aos barcos e proa erguida frente às nuvens aterramos em Marte. (...) E depois há ainda isto. Amar-te sem dizer. Mas que passado já na tormentosa vaga no vácuo se prolonga. E assim chegámos à baía das línguas e dos lugares.” (E. M. Melo e Castro algures).

(para mim esse lugar é aqui aqui aqui. agora agora
nesta quase ágora entre tanta tanta água

Primo,
foste tu que descobriste que “barbeito” é “uma terra em pousio” (vinha escrito num livro enorme, lembras-te, claro.)
e “barbeito” é também um muro que une os contornos da terra cultivada (vinha no dicionário...)
ou a primeira colheita de um terreno (aprendi num livro antigo).
este que está aqui, por exemplo, é para ti. 
obrigada por me ensinares isto. e – quase sem quereres mas sabendo (imagino eu) – porque os postos de bilhardice que tu inventaste me lembram marcos de correio (eu gosto muito de marcos de correio marcas de correspondência marcas marcas),
daqueles marcos de correio dos antigos, vermelhos, altos e fortes, como aquele ali em frente, à saída do Teatro

vês ? vemos vamos ver ?
vamos. escreve-me
de volta na volta do correio escreves?

diana
funchal/lisboa, 24 de abril – porto/lisboa, 07 de maio ‘2008

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